Escrita de outrora - Na manhã, um acidente

14/05/2011 - Na manhã, um acidente

Na manhã, um acidente

O dia amanheceu como qualquer outro. As nuvens negras escondiam o sol atrás de uma brisa gelada e uma fina garoa que convidava os trabalhadores a se esconderem em suas casas ou casacos. Vários carros enfileiravam-se em uma procissão através do asfalto e os guarda-chuvas transitavam planando acompanhados da solidão e da individualidade.

Em um dos automóveis o aparelho de som emitia uma leve e melódica música barroca que chegavam aos ouvidos de um jovem rapaz, acompanhada das buzinas das motos. Um cigarro se consumia sendo segurado com muito descaso pela janela aberta e o motorista acelerava e freia seguindo o trânsito automaticamente, como se o corpo soubesse o que fazer sem a necessidade da mente intervir em tais ações.

O típico trajeto para o trabalho já se estendia mais que o normal, mas isso não estava nem perto de causar uma preocupação para Carlos que viajava em seus pensamentos que iam muito além daquela estrada congestionada ou os imensos prédios que a beiravam.

Foi até uma surpresa e um pouco chato quando o carro passou a se mover rápido após passar por uma construção no meio da pista. Agora a atenção estava voltada ao que se passava a sua frente, mas sua mente ainda ia e vinha ocasionalmente.

Sua distração foi acentuada pela mudança da música no rádio. Agora o ritmo da sinfonia fazia com que o volante fosse alvo de ritmados golpes e um cantarolar acompanhado de assobios surgisse e tomasse conta de todo o veículo. Chegou a olhar o relógio de rua, mas não percebeu que estava absurdamente atrasado.

No momento em que a orquestra se preparava para a apresentação do segundo tema a atenção do rapaz voltou por um baque surdo e um forte solavanco. Só para livrar a alma da culpa, Carlos ergueu os olhos e viu a luz vermelha que guiava os condutores, não era ele que estava errado, um bom sinal.

Ao sair do carro esqueceu por alguns segundos o porquê estava ali e voou até um passado que nunca existiu e a um futuro que continua sendo construído, tudo devido a um rosto, uma imagem que veio à sua frente e tocou seu coração como nenhuma outra imagem seria capaz.

Ninguém nunca será capaz de explicar o porquê ou como isso foi acontecer, a sequência de fatos contribuíam para um caminho completamente diferente, mas Carlos não se preocupava, apenas aproveitava um dia maravilhoso na companhia de uma das figuras mais bela que já vira.

Ambos conversavam e riam do acidente, do trânsito e a complicação que causaram, a demora e confusão com os guinchos e até do fato de serem obrigados a voltar para casa a pé naquela tarde, sem nenhum dos dois sequer lembrar que não tinham ido ao trabalho, apenas aproveitavam a pausa em um seco e protegido bar.

A chuva, o barulho das pessoas, o garçom oferecendo outra cerveja, nada fazia com que o rapaz tirai-se os olhos da bela figura que estava do outro lado da mesa. Ela era ruiva, olhos castanhos, jovem, alegre, meio desligada e jovial. Seu despreparo para lidar com certas situações (acidentes principalmente de trânsito) só a levaram um passo a mais no sentido da perfeição para o singelo humano que a admirava e feliz abria um sorriso bobo cada vez que sua acompanhante o presenteava com um olhar.

Esse momento se estendeu por muito tempo, mas aconteceu antes que o relógio ganhasse fôlego de mexer seus ponteiros e só acabou no toque de celular mais irritante do mundo naquele momento. Júlia recebia uma ligação de seu chefe perguntando se estava tudo bem e indagando a ausência. A vida sempre tenta mostrá-lo que sua existência é insignificante, mas lembre-se que sua alma é imensurável e mesmo o universo pode ser pequeno perto de um ser completado pela presença daqueles que se ama.

Ambos, depois de muita negociação, conseguiram dispensas do trabalho (um acidente de trânsito abala o emocional de qualquer pessoa), foram ao cinema assistir a um filme de ação e comédia, saíram muito contentes de terem escolhidos a nova animação que acabara de estrear e foram almoçar. Mesmo com muita relutância e uma constante discussão, Carlos sempre pagava as contas e prometia que deixaria que a moça pagasse a próxima.

A tarde foi abençoada com um sol tímido em meio as nuvens e uma discussão a respeito de obras literárias em frente a uma vitrine de uma livraria no shopping. Com algumas discordâncias um concordava completamente com o outro em suas críticas e a conversa ia ficando cada vez mais prazerosa.

Uma majestosa lua cheia surgiu para avisar aos transeuntes que este dia, apesar da relutância, deveria acabar. Mas um ciclo deveria se fechar, interrompendo um momento de maravilhosa paz e satisfação e guardá-lo no mais seguro cofre, a lembrança. Com uma promessa de se rever, cada um pegou um taxi e seguiu seu caminho, com uma felicidade sem tamanho no coração, acompanhada da esperança de ouvir o telefone tocar, sem perceber que não haviam trocado números de telefone ou qualquer outra forma de comunicação.

Igor Castañeda Ferreira

Escrita de outrora - Eu gostaria

23/04/2011 - Eu gostaria…

“Eu gostaria poder pedir desculpas, dizer obrigado e clamar aos sete ventos aquilo que meu coração carrega há tanto tempo. Poderia eu juntar coragem suficiente para pôr minha alma em risco e olhar em seus lindos olhos enquanto me livro deste peso que me consome? Sinto por dizer o que disse e feito o que fiz, mas transformar-me em um monstro a seus sentidos foi a melhor forma de afastar-lhe de meus olhos, já que nunca vou poder afastá-la de meus pensamentos.”

Igor Castañeda Ferreira

Escrita de outrora - Uma manhã

09/04/2011 - Uma manhã

O relógio eletrônico acendeu em sete horas e começou a toar uma música estranha sobre os males de quem sofre. Na cadeira ao lado, estava postado um homem em seu traje social, acompanhado de uma garrafa de uísque vazia e um copo cheio que descansava em sua mão esquecida pelo próprio corpo.

Ele levantou, pousou o copo na mesa junto ao relógio, tampou e pegou a garrafa. “Uma bela noite meu caro johnny”. Foi até a janela, abriu a velha cortina de pano e viu a grande luz do sol começar a cobrir a cidade que acordava para mais um dia de correria.

- É. Parece que isso recomeça mais uma vez.

Deu alguns passos para trás e lançou a garrafa o mais longe que pode. Ainda ficou alguns segundos parado esperando ouvir o som do vidro se despedaçando vinte andares abaixo, mas quando nada aconteceu bufou em conformidade e voltou ao quarto para religar o telefone que havia desligado algumas horas antes.

Foi só o plug terminar de ser encaixado na parede para que uma luz vermelha piscasse em um botão sobre o aparelho. Ao apertá-lo uma voz mecanizada se estendeu em informações de números e datas. Logo em seguida uma voz levemente rouca e conhecida tomou lugar.

- Opa. Eae, cara? Sou eu, Luiz. Você está aí? Não estou conseguindo falar com você no seu celular. Me liga.

Um apito, novamente a voz mecanizada e uma nova mensagem.

- Cara, estou preocupado com você. A Ana disse que te viu saindo um pouco depois do discurso. Você já devia estar em casa, me liga. (bip)

- Ei, estou aqui em baixo e o porteiro não está querendo me deixar entrar. Aparece aí, me deixa subir. Eu sei que você precisa falar com alguém. (bip)

- Não adianta você se fechar agora. O que aconteceu, aconteceu, não tem mais volta. Devíamos agora era sair, conversar, falar mal, xingar para poder voltar a dar risada. Ficar aí sentado sozinho não vale… (bip)

- Como ia dizendo, é uma grande injustiça você e esse black aí sozinhos. Eu sei que já deve ter apenas a raspa do taxo, mas é sempre chato não poder brindar a um label. Eu conheço um lugar que você vai adorar. Sem brincadeira. Lembra do Evan… (bip)

- Me lembra após te dar um novo telefone. Essa secretária eletrônica sua dá nos nervos. Eu não vou tentar te tirar de casa, mas aproveita esse tempo para pensar e, principalmente, esquecer. Às vezes a felicidade está em parar de sofrer pelo que aconteceu e trilhar seu caminho em busca de novos acontecimentos. Va… (bip)

Desistiu de ficar parado ouvindo às mensagens e se dirigiu para a cozinha. Pegou uma chaleira no armário sob a pia e, no mais silêncio possível, a encheu de água e pôs no fogo. Ouviu barulhos no corredor e viu um jornal muito mal dobrado sendo passado pela abertura para cartas na porta.

Recolheu aquele conjunto de papel, abriu e viu sua foto estampada na primeira página, logo abaixo de um pequeno texto que dizia: “Jovem estudante abala comunidade científica em palestra sobre o impacto da manipulação de estruturas básicas de vida”.

Folheou algumas páginas até achar a matéria completa, onde um jornalista sem qualquer conhecimento em biologia descrevia como seu discurso havia causado conversas, discussões e até brigas no conselho internacional de biotecnologia.

Essa leitura fez um pequeno sorriso surgir em seu rosto, mas logo foi desfeito. Parecia que cada pequeno momento de calma ou felicidade fazia sua mente entrar em conflito com seu coração trazendo a dor guardada nas memórias e fincado-a profundamente na alma.

Percebeu que o telefone ainda despejava mensagens de seu amigo e se perguntou quantas ainda havia. Voltou para a cozinha, vasculhou atrás do bule de café e o achou sujo na pia, aguardando para ser lavado. Desistiu dele, pegou uma jarra de vidro, o coador, café e açúcar e deixou tudo pronto à espera da água.

Com o café pronto, encheu uma grande caneca com o líquido quente, pegou algumas bolachas em um pote de vidro em cima da geladeira, jogou-se novamente na poltrona ao lado do telefone e ocupou-se de fazer sua barriga parar de reclamar de fome.

Estava terminando seu café quando a voz que saía do aparelho ao seu lado começar a encher. Levantou e dirigiu-se decidido a fazer o telefone calar-se, mas não foi necessário. A voz metálica voltou a surgir para informar que a memória estava cheia e que nenhuma mensagem seria mais armazenada até que fosse tomada uma providência.

Reconfortado com a notícia, voltou-se a sentar e ter um pouco de paz antes de ouvir o sino do telefone tocando insistentemente. Sabia que devia ser seu amigo disposto a incomodar novamente, então deixou o aparelho cair no atendimento automático. Mas, a voz que saiu do telefone não foi exatamente o que ele esperava, fazendo seu corpo ficar imóvel e seu peito apertar em uma doce dor.

“Eu entendo que você não quer falar comigo, mas também sei que está aí, postado ao lado nessa sua poltrona que tanto gosta. - Começou uma doce e trêmula voz feminina. - Eu provavelmente não vou me lembrar disso amanhã, então espero que não esteja sendo gravado na sua secretária e que você não esteja ouvindo. Aquela garrafa de champanhe que você esqueceu aqui está sendo muito útil. É uma bebida muito ruim, mas ajuda a pensar. Muito mágico isso.”

“Mas eu estou ligando para poder falar o que realmente queria ter dito. Você não tem o direito de estragar a sua vida por minha causa. Não é justo! Eu não tenho nada além de uma vida meia boca como ajudante em um escritório meia boca. Pedir para você ficar seria uma injustiça muito grande e eu percebi isso vendo sua apresentação hoje.”

“E eu não digo isso apenas por causa dos diversos cientistas que te aplaudiram de pé no final, mas também pelo brilho em seus olhos enquanto falava, o sorriso escondido na seriedade imposta pela ocasião e o resplendor da realização e sucesso que o circundava. Não posso que deixe de ser essa figura perfeita apenas para fazer com que meu coração sinta a mais profunda alegria de uma alma realizada.”

“Agora sim eu terminei de falar tudo que tinha para falar e, do fundo do meu coração, espero que você me odeie da mesma forma e proporção com que sempre te amarei.”

- Te odiar vai ser impossível. - A caneca que antes havia café estava em pedaços no chão e o telefone tremia em sua mão enquanto reunia forças para responder. - Toda vez que ver o sorriso de uma criança lembrarei do doce prazer de te ver sorrir. Cada vez que eu sentir a brisa fresca da manhã meu coração ficará pequeno com as lembranças das melhores alvoradas de minha vida quando a via em meus braços. E injustiça maior é fazer com que duas almas chorem a distância enquanto um simples empecilho as mantém afastadas e sofrendo.

Os dois permaneceram no mais absoluto silêncio enquanto pequenas lágrimas escorriam do cansado rosto do jovem que tinha todo o seu ser focado na busca de sua ouvinte enquanto o sol preenchia o quarto com as boas-vindas para mais uma manhã na vida cotidiana dos amantes.

Igor Castañeda Ferreira