30 Ago 2024
12/02/2011 - Paulista - Trianon
A batida silenciou-se por alguns instantes e voltou em outro ritmo. Essa nova música era mais rápida, fazendo com que ela apertasse o passo, intensificando a corrida. Ana Luísa havia se mudado para a região há pouco e adorara a ideia de ter um espaço para correr todas as manhãs.
Como sempre, acordou cedo, foi até a geladeira, pegou a metade de um mamão que começara no dia anterior e uma maça e uma banana na fruteira. Por fim, foi ao armário e pegou a última caixa de leite, percebendo que precisaria fazer compras do próximo sábado. Anotou isso em um post-it e colou na porta do armário.
Lavou as frutas e as fatiou com casca e tudo, jogou-as no liquidificador e juntou o leite. Ainda não havia se acostumado totalmente com o sabor das cascas na vitamina, mas lera em uma revista que fazia bem à saúde.
Terminou seu desjejum com uma xícara de café e uma fatia de pão com queijo, vestiu seu traje esportivo, pegou seu MP3, selecionou uma playlist que a motivasse a prática de exercícios e saiu, trancando a porta atrás dela.
No elevador, aproveitou o espelho para arrumar o longo cabelo negro em um rabo de cavalo bem preso em elásticos e presilhas. Percebeu que adorara aquela calça leg. Era um preto bonito, confortável e detinha um poder incrível de modelar seu corpo.
Já na rua, parou na porta do condomínio e passou longos minutos se alongando. Esse processo ajudava a evitar lesões e serviam como um último incentivo para sair tão cedo. Estava em uma região central e, mesmo nos primeiros raios de sol, diversas pessoas passavam em roupas sociais ou uniformes, carregando suas malas e celulares.
Ana adorava especular as profissões dos que passavam, assim como um pouco de suas vidas particulares.
Para onde iam?
Por que iam?
Por onde voltavam no fim do dia?
Para onde voltavam?
Todas essas perguntas formavam pequenos personagens que sumiam da mente da jovem antes de bater o cartão na entrada ao trabalho.
A tarde iria subir algumas quadras até o prédio que contava com uma grande número 500 fixado em sua entrada pela avenida e iria ocupar seu dia com desenhos, gravuras, tipografias e os demais elementos do setor de arte de algumas revistas de moda. Só que isso era depois, agora iria no sentido oposto, em direção ao parque.
Poderia cortar pelas ruas paralelas e subir para a avenida apenas próximo ao seu destino. Esse, na verdade, era o caminho mais fácil, havia menos pessoas, mas ela perderia a grande movimentação de pessoas e carros que adorava ver embalados ao som de suas músicas. Decidida, verificou se seu tênis estava bem amarrado e começou sua caminhada.
Esse era seu aquecimento.
Pegar uma pequena subida até a avenida, atravessar algumas quadras, passar em frente ao prédio da gazeta, FIESP, atravessar a rua em frente ao MASP e adentrar finalmente o parque, contar alguns passos e começar seu trote.
Primeiro divagar, mas ia aumentando aos poucos.
Finalizou sua corrida acompanhada de árvores e pessoas que passam por lá para cortar caminho. Na saída parou na banca de jornal que fica em frente, lá encontrou os dois policias com quem sempre se deparava, pediu uma água, comprou algumas revistas, o jornal e pegou seu caminho de volta.
Ainda passaria na academia no caminho de casa. Faria alguns exercícios para os braços, abdômen e um pouco de aeróbica, iria para casa, tomaria e bom e demorado banho, se trocaria e, feliz e motivada iria para casa.
Repassar o dia a fez inspirar fundo e sorrir.
Um movimento involuntário.
Quando voltou a prestar atenção ao que ocorria a sua frente viu um jovem vestido em uma roupa social mal ajeitada, andando calmamente, como se não tivesse destino, calma e lentamente.
O jovem trazia nas costas uma mochila que tirou das costas e sentou perto a uma das fontes que ornamentava as bases do museu. Antes de seguir seu caminho, Ana ainda ficou olhando por tempo suficiente para vê-lo sacar da bagagem um grande livro verde, um óculos, fones, um aparelho de som e se preparar para passar um certo tempo lendo.
Igor Castañeda Ferreira
28 Ago 2024
06/02/2011 - Uma noite, um corpo e uma carta
Como sempre aqueles corredores estavam vazios e amedrontavam a qualquer pessoa que não estava habituado graças à falta de janela e às várias lâmpadas queimadas ou que piscavam freneticamente.
Rubens adorava trabalhar a noite por poder ficar a sós com seus pensamentos e nada mais, mas odiava seus deveres. Ter de despir, limpar, catalogar e armazenar defuntos nas geladeiras do necrotério era repetitivo e entediante. A única forma de se manter ali era ficar imaginando como cada um daqueles corpos chegou até suas mãos e arriscar quantos ia chorar em seus cachões.
No começo ele mantinha uma lista com nomes e seus palpites para contar e ver se acertará (teve um mês em que até montou um gráfico), mas não tinha mais tempo para isso. Agora só imaginava os números e puxava uma leve conversa com os cadáveres.
Saindo um pouco de suas memórias, o enfermeiro olhou o relógio e percebeu que seu horário de intervalo havia acabado. Desde a instalação das fechaduras eletrônicas e o novo sistema de segurança não podia mais passear pelos corredores e buscar um pouco de vida nos andares superiores. Sua vida agora era monitorada.
Segurou sua caneca com café em uma mão, a sacola com frutas na outra, o sanduíche que comia e voltou para seu posto de trabalho. Lá, procurou uma mesa sem cadáver ou qualquer utensílio, depositou seu lanche lá e puxou-a para perto do corpo que decidiu que seria o próximo.
Entre um gole de café e uma mordida em sua refeição colocou as luvas e buscou um bisturi para remover os panos que cobriam o corpo. Havia tanto sangue e sujeira sobre o homem que os tecidos que o recobriam não podiam mais ser chamados de roupa.
Era um dos poucos cadáveres que chegava nesse estado para ele, geralmente eles passam por uma autópsia antes ou suas roupas, ou pelo menos a camiseta, são removidas nos primeiros atendimentos.
Aquele homem que parecia estar em seus 40 e poucos anos teria passado despercebido a Rubens, a não ser devido a um pedaço de papel amassado e apertado na mão esquerda.
O papel estava meio queimado, assim como parte da mão do falecido identificado como Antônio. Ao ser desdobrado mostrou que a parte inferior tinha perdido boa parte de sua informação graças ao fogo e ao sangue que impossibilitava a leitura, mas a maior parte podia ser lida:
Eu já cometi inúmeros erros em minha vida. Isso é normal, qualquer um comete. Esse é a melhor dádiva do ser humano, a habilidade e a liberdade do erro, somos livres para fazermos o que quisermos e, se alguém ficar chateado ou algo dar errado, basta um simples ‘me desculpe’ e pronto. Você foi perdoado. Por quê? Porque você é humano.”
Uma boa filosofia de vida. Faz-te ter um espírito livre, despreocupado e reconfortado pela incoerência e impunidade da vida. Cria uma demoníaca ilusão de que tudo pode ser feito, já que há um perdão a tudo.
Hoje em dia eu passei do momento de festa e aproveito os magníficos sentimentos do ‘dia seguinte’. A ressaca que martela sua cabeça com o ressentimento daquilo que não deveria ser feito, mesmo que tenha trago bons momentos.
Sou circundado por questões de debatem e refletem em meu interior: O que fiz de errado? Em que momento da minha vida fiz a escolha que me trouxe até aqui? Se eu pudesse voltar e reparar um erro, qual seria ele? Qual dos tantos?
Muitas das pessoas que me rodeiam tentam me tranqüilizar dizendo que os tropeços ao longo do caminho abrem uma chance para que eu me erga. Erguer para que? Para onde? Já que tropecei, para o mesmo lugar que estava antes? Retroceder para poder voltar ao mesmo lugar? Nunca ir à frente?
Antes das centenas de garrafas da mais pura vodka que agora enfeitam meu ‘escritório’ em uma pilha muito bem formada ao meu lado, eu diria que este é um papo de perdedor, bêbado ou de um defunto. Mas eu digo qual a verdade nesse pensamento: ambos. Quem escreve agora é um perdedor, bêbado que não existe mais à sociedade ou a qualquer pessoa.
Sempre estive cercado de diversos amigos, mas nunca tive um ‘amigo de infância’ ou qualquer pessoa que conseguisse permanecer ao meu lado por mais do que dois anos. Eu sempre fazia algo errado, sempre dizia ‘me desculpe’ ou ‘me perdoe’.
Nunca liguei para isso (afinal, pra que preciso deles? Consigo viver bem sozinho), pra falar a verdade, nunca reparei nisso. Fui me isolando e recentemente a única coisa que me restou foram colegas de bar ou de sarjeta pelas noites afora.
Até mesmo minha família, pai, mãe, irmãos, pessoas condenadas a te amar para sempre, cansaram de ouvir minhas desculpas, me desvalorizaram e partiram. Essa riminha que acabei de escrever montaria um pequeno sorriso em meu rosto se não fosse trágico.
Descobri, de uma forma não muito agradável, que há situações onde ser humano não adianta. Não há desculpas, não há perdão. O momento em que começa a ser envolver com pessoas que não lhe tratam como humano.
Devo muito dinheiro e chegou a hora de pagar. Na verdade, esse momento já passou há muitos meses. Se eu não estivesse muito bêbado para isso eu tentaria lembrar-me da data e o valor que deveria ter pagado, mas isso não vem ao caso. Nesses últimos momentos, limito-me a pensar na vida e pôr nesse minúsculo testemunho o que deduzi através dos meus erros.
Para quem lê um pequeno aviso: não tome isso como verdade, muito menos como ensinamentos, já que um sábio nunca condena a si uma morte como a que terei. Apenas relatarei da melhor forma que puder o que me trouxe até aqui e o que tirei disso tudo…
Nesse ponto em diante o papel se impossibilitava de ler. Esse era o último e inacabado relato de um defunto. Aquilo tocou Rubens de uma forma que nunca havia imaginado, um corpo havia se confessado a ele antes de partir.
O enfermeiro terminou seu lanche e seu trabalho, organizou suas coisas e foi para casa. Mais tarde descobriu nos jornais que o Antônio da noite anterior essa um pé rapado que devia muito para agiotas e deixou esse mundo através dos punhos de gorilas disfarçados de gente.
Igor Castañeda Ferreira
Nota do autor: Esse texto nasceu de uma tentativa de elaborar um roteiro que nasceu durante uma aula de roteiro para jogos.
26 Ago 2024
06/02/2011 - Reunião
Nada do que acontecera antes poderia prever ou explicar aquela cena. Os dois homens se entreolhavam como se seus olhos conversassem. Eles se conheciam tão bem que não era necessário trocar uma única palavra, podiam prever o que seria dito.
- Por favor. Eu te avisei. Você sabia. - Um homem alto que vestia uma roupa calça social risca de giz e uma camiseta azul coberta por um jaleco branco cortou o silêncio.
- Eu simplesmente não acreditei. Nunca poderia acreditar nisso. Eu me forçava a não acreditar. - O segundo homem tinha um porte e um tom de voz que mostravam superioridade ao seu ouvinte, mas vestia apenas uma calça jeans rasgada e esburacada e um colar prateado. Seu peito, braços estavam sujos, enlameados e cobertos de sangue e feridas.
Uma possível hierarquia ficava mais clara, pois o homem com o jaleco estava sentado em uma cadeira em frente a uma pequena mesa de madeira enquanto o outro estava de pé do outro lado do móvel de jacarandá.
- Escute Andrew. Eles pediram por isso. Pediram-nos para criar algo que não poderia ser criado e eu tinha de convencê-los disso. - Disse enquanto tirava seu crachá e seu jaleco e colocava sobre a mesa.
A foto do documento mostrava o rosto de um homem forte, com barba mal feita e um cabelo loiro e bem penteado. Porém, o homem que agora esfregava os olhos e apoiava-se na mesa enquanto apontava para uma cadeira onde seu colega podia sentar-se aparentava estar cansado, tinha a barba grande, grossa e desarrumada, assim como seu cabelo.
- A sim. Brilhante idéia. Realmente funcionou. E como você pretende chamar essa nova doença que VOCÊ criou? Mal de Santos? Seria uma linda homenagem a você Túlio. - Andrew expressou-se com extrema calma, mas ao final chutou a cadeira que lhe foi mostrada, fazendo com que o móvel atravessa-se a pequena sala, chocando com a parede de concreto sólido.
- Não. Inventaria outro nome. Nunca gostei muito desse meu sobrenome. Além do que faria as pessoas se confundirem. O epicentro não foi a baixada.
O sarcasmo de Túlio fez com que Andrew ficasse extremamente nervoso. Com uma força sobre-humana arremessou a mesa, que se dividiu em vários pedaços ao encontrar um obstáculo, e levantou o outro homem pelo pescoço.
- Então é por isso que está tão nervoso. Você está doente. - A voz fraca e rouca devido à garganta obstruída era interessada e encantada assim como seu olhar. - Não entenda isso como o fim do mundo. Há pontos fortes. Podemos criar uma vacina. Você pode aprender a controlar isso.
O olhar e as palavras de Túlio foi de encontro a algo enterrado no fundo do coração de Andrew. Sua mente começou a fervilhar de lembranças. Seus braços tremeram e sua cabeça começou a arder. Por alguns instantes esteve em outros lugares e o silêncio se manteve na área. Ao voltar a si, seus olhos estavam cobertos por lágrimas que por pouco não encontravam seu trajeto pelo rosto machucado.
- Você está se divertindo? Está gostando de ficar enclausurado em uma sala minúscula nos subsolos de uma cidade abandonada ao caos? Ou apenas gosta de ficar nesse seu traje social brincado de cientista? - Gritou, arremessando o homem até a parede do outro lado da sala que bateu na parede arfou de dor e cuspiu sangue enquanto tentava levantar.
Túlio limpou as lágrimas com o verso das mãos, virou-se e admirou o homem que tentava colocar força nos músculos dos braços ao tentar se levantar e fracassava. Ficou olhando aquela cena por mais alguns segundos até se cansar daquilo e voltar sua atenção para o crachá que pousava próximo ao homem caído.
- Você não tem idéia do que fiz. Do que eu estou me tornando. - disse pegando o crachá. - O grande cientista, ganhador de tantos prêmios, PHD, trabalhador para o governo quase não existe mais.
- Eu vi o que você irá se tornar. Eu tenho trabalhado com seres como você. Eu busco uma cura. E você pode me ajudar, basta se manter calmo. - Ele desistira de se levantar e apenas girou o corpo para poder olhar a sala. - Acho que você quebrou algum osso meu.
- Eu te falei que esse seu jeito insolente iria me irritar um dia. - Finalizou Andrew dirigindo-se à saída e pisando no abdômen de seu colega ao passar por ele.
- Espere. - Balbuciou Túlio quando Andrew girou a maçaneta e fez a forte porta de metal maciço girar com um grunhido de ferrugem. - Você não pode sair dessa porta no estado que está. Tem de ficar e esperar que eu o ajude. Se você transpassar essa porta o exército irá atrás de você.
- Andrew parou por um tempo, considerando o que acabara de ouvir e ignorou voltando apenas para pegar o jaleco branco, cobrir seu corpo desnudo parcialmente com ele e dirigir-se novamente para a saída. Perto à porta, Túlio segurou a perna do colega e falou:
- Para onde for sua carne morta não ganhará rubor. Seu peito
não mais vibrará no ritmo de sua respiração, já que está não existirá mais. Seu coração não será capaz de sentir, seja ódio, ou seja, amor, nem mesmo seu sangue (antes quente e veloz) conseguirá mover. Seus olhos não estarão mais abertos em seu brilho majestoso, pois não terão uma alma para iluminar.
Igor Castañeda Ferreira
Nota do autor: Esse texto nasceu de uma tentativa de elaborar um roteiro que nasceu durante uma aula de roteiro para jogos.