Escrita de outrora - Melodia de um anjo

22/05/2011 - Melodia de um anjo

O teatro estava postado em meio à cidade. Os altos prédios, majestosos e requintados circundavam aquela construção do milênio passado. As madeiras, andaimes e peças de metal cobriam suas portas e janelas e suas paredes estavam com sua pintura descascando e escondendo a vida que reinava antigamente.

Há muitos anos as pessoas passavam em frente à construção e a ignoravam completamente. Algumas gerações fizeram passeatas, protestaram, falaram e foram ouvidas, mas nenhuma reforma jamais foi concluída. As poucas que começaram a ser feitas foram amaldiçoadas com acidentes e mortes.

Contra o desejo dos grandes empresários, a cidade manteve a fachada do prédio e o mantém em pé para lembrança dos anos de glória daquele que foi o maior palco de todos os tempos, até que forças fecharam suas portas para todo o sempre.

Muitos anciões ainda são capazes de relatar como as gloriosas chamas dançavam em suas janelas enquanto consumia tudo e todos que estavam em seu interior. Segundo os jornais nada conseguiu atravessar os portais e alcançar a vida já que as estátuas que adornavam as passagens foram as primeiras a tombar, impondo quilos de arte nos caminhos da salvação.

Quem transita pela viva praça na calada da noite é capaz de dizer que ouviram o cantar de milhares de pessoas que clamam a vida por um harmônico e belo coro, acompanhadas dos belos passos das velhas cortinas que saem ao público, tendo o vento como seu parceiro de dança.

Em uma dessas noites, quando a lua reinava cheia a noite, acompanhada de suas estrelas, uma jovem que perdera a chance de pegar o último transporte para casa decidira esperar as horas passar lendo na porta do antigo mausoléu.

Como tantos outros relataram, foram necessários apenas doze badaladas do sino para que as notas começassem a soar e as folhas das árvores acompanhassem seu ritmo. De início os inocentes ares que ali transitavam foram os culpados pela melodia, mas logo ficou claro que eles nada contribuíam para o fenômeno.

A moça, encantada pelo som que lhe alcançava os ouvidos, fechou os livros junto com seus olhos e viajou no sofrimento que aquele allegro trazia ao seu coração, ao mesmo tempo em que enchia sua alma de calma e resplandecência.

Na entrada do segundo movimento, um violoncelo se juntou retirando as vozes da arte a capela, inserindo-as em um dueto mágico e mórbido. A mente da ouvinte adicionou violinos, trompas, trompetes e oboés à música, completando uma gloriosa e falsa sinfonia.

Enquanto a razão forçava o movimento contrário, o corpo da jovem seguiu até o interior do grande monumento de pedraria, mesmo desconhecendo o caminho. Sua curiosidade não se continha perante o medo do desconhecido.

No interior, a cena era sobrenatural. Velas penduradas em gloriosos candelabros de cobre estavam acessas na parede e o teto brilhava com a ajuda de um majestoso lustre de cristal dependurado por fortes correntes do mais forte ferro. A ante-sala, vazia e encantada com os mais belos tapetes, encantava em um brilho invisível a seu exterior.

Seguindo, a visão era ainda mais majestosa. No ambiente principal, os camarotes saltavam glamorosos, vivendo sobre os assentos da mais linda lã vermelha que contrastava com o carvalho que completava os assentos. Neles, diversas pessoas cantavam com as vozes afinadas, acompanhadas pelo maestro que tocava no centro do palco.

A jovem sabia que era impossível um objeto de madeira soar com tanta força para encher o local com tanta vivacidade, mas a realidade do momento fez com que tudo parecesse real e plausível. Ainda mais quando vislumbrou quem movia as cordas com tanta habilidade.

Um homem alto e forte cobria parte do instrumento com seus longos, lisos e negros cabelos. Seu rosto era branco, bem definido e jovem. Estava vestido em um liso, belo e bem costurado smoking que não apresentava nenhuma resistência aos movimentos de seus braços.

Seu olhar convidava a aproximar-se, algo que foi respeitado. Quando mais perto, tudo que estava em volta ia sumindo e a existência se limitava àquele ser e os sons que nasciam em suas mãos.

Toda a mágica do acontecimento foi completada quando o concerto se encerrava. Se despedindo de um público que levantava para recitar o heróico final, o músico levantava de seu assento enquanto abria gloriosas e belas assas brancas que enchiam o palco com paz, calma e felicidade.

As palmas dos fantasmas que preenchiam a platéia fizeram o regente despedir-se de sua ouvinte com um olhar de gratidão e sumir cobrindo seu corpo através da estrutura revestida de penas que saltava de suas costas.

O barulho do grande livro chocando-se contra o chão fez com que a moça acordasse do mais belo sonho e se visse presa no interior de um prédio velho, consumido pelas chamas e abandonado pelo tempo.

As poltronas desaparecidas eram marcadas por corpos apodrecidos e carbonizados. As paredes estavam negras pelas fumaças e tombavam pela falta de força. O palco só existia graças as suas fortes raízes de metal e o lustre principal jazia em seu interior.

Com medo e confusa, correu, desejando vida, desejando presença, desejando sentir que ainda poderia caminhar como mortal. Ao atravessar um pequeno vão que a livrava daquele cemitério, viu o sol dando-lhe boas-vindas ao mundo que conhecia. Pode enfim pegar o ônibus para casa e sobreviver entre seus queridos.

O teatro ainda estava morto entre a modernidade que se levantara ao seu redor, mas o jovem nunca mais passou por ali sem desejar e sem temer, ansiando ouvir aquele belo som tocado pela mais bela criatura e acompanhado pelas mais desgraçadas almas.

Igor Castañeda Ferreira